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sábado, 10 de setembro de 2011

O Homem das Barbas Azuis


Estava um lenhador sentado, junto à margem de um rio, de queixo nos joelhos, muito triste, quando por ele passou um homem de barbas azuis.
Um homem de barbas azuis? Como pode ser isso? Pode, pois.
Nas histórias tudo pode acontecer. Então, era um feiticeiro?
Talvez fosse. Continuam a aparecer nas histórias. Uns de barbas encarnadas, outros de barbas verdes… Este tinha-as azuis, que mal há nisso?
O lenhador nem reparou na cor das barbas do homem. Estava tão desolado, a olhar para o rio, que tudo o mais lhe era indiferente.
- Aconteceu-lhe alguma desgraça? – perguntou o homem de barbas azuis, numa voz que parecia de pessoa bondosa.
- Uma grande desgraça – respondeu o lenhador. – Estava a dormitar, cansado do trabalho, ao fresco da beira-rio, quando o machado me escorregou. Foi para o fundo e eu, que não sei nadar, não tendo machado, fico um inútil.
- Deixe que eu trato disso – tranquilizou-o o homem de barbas azuis, despindo a camisa e as calças e tirando meias e sapatos.
Mergulhou nas águas do rio, que estava limoso e redemoinhento. Um perigo. Voltou ao cimo com um machado de oiro.
- É este? – perguntou.
- Ó meu senhor, esse não é. O meu machado é ferramenta de pobre.
O homem de barbas azuis mergulhou de novo, para logo voltar à superfície, empunhando um machado de prata. Claro que também aquele não era o machado do lenhador.
Ao terceiro mergulho trouxe-lhe o machado perdido.
- E, como és honesto e sincero, levas também os outros machados – disse-lhe o homem de barbas azuis.
Pela primeira vez o lenhador reparou nas barbas do seu benfeitor. Assustou-se, atrapalhou-se e, tartamudeando uns agradecimentos em voz sumida, abalou com os três machados. Entardecia.
Antes de chegar a casa, encontrou um vizinho a quem contou a maravilha, exibindo os machados de oiro e de prata que refulgiam, à luz do sol a despedir-se.
O vizinho, que vinha da lavoura numa carrocita a desfazer-se, nem quis ouvir a história segunda vez. Puxou as rédeas e fez a mula trotar por barrancos, até à beira do rio.
Estava a noite a descer. O vizinho do lenhador, num afogadilho, desatrelou a mula e atirou a carroça com tudo dentro, ribanceira abaixo. O rio engoliu-a num trago.
Depois ainda atirou o relógio, a bolsa com moedas, o colete e a camisa para o meio do rio. E pôs-se a gritar, numa grande choradeira:
- Ai quem me acode, que perdi todos os meus pertences e não sei nadar!
Relanceava os olhos cobiçosos para as moitas que escureciam, à espera do tal bruxo de barbas azuis. De mãos nas cavas, tiritando da friagem da noite, gritou e voltou a gritar:
- Quem me devolve os meus ricos bens, a carroça de prata, com rodas de oiro e a riqueza toda que lá ia dentro, mais a camisa e o colete com botões de oiro e a bolsa cheia de libras, mais o relógio de oiro, ai quem me acode?!
A mula pastava solta, de dente arreganhado para a ervinha tenra. Ou estaria a rir-se?
Mais se ria, à socapa, a Lua, cheia e chapada, no meio da noite.
E o homem, quase nu, numa aflição, cada vez mais a sério:
- Quem me salva? Quem me acode?
Mas ninguém lhe acudiu.
(António Torrado)

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